Friday, December 23, 2016

Associação CIDADE DE BALSA


Apontamentos de uma proposta programática
 

Zona arqueológica de BALSA
Esboço de carta de risco arqueológico da zona de BALSA


Finalidade estatutária


A Associação tem por objecto a defesa do património e da memória histórica de Balsa, a prossecução de acções de ordem cultural e educativa, bem como promover a investigação científica e o ordenamento territorial de paisagens arqueológicas, culturais e ambientais, podendo também actuar nas áreas de promoção económica e turística.


A acção da Associação desenvolver-se-á em Portugal, podendo eventualmente estender-se a países que tenham sido abrangidos pelo Império Romano e a outros.
 

Qual é o nosso objectivo estratégico?


Preservar e estudar a extinta cidade de Balsa com o seu território, os seus espólios e o seu tempo, para melhor os conhecer e poder legá-los às gerações futuras.

Integrar o conhecimento e o usufruto de Balsa na história, na vida e nos projectos futuros de Tavira e do Algarve.

Definir a sua defesa e promoção no quadro da Ria Formosa e do seu parque natural, destacando a cidade como lugar charneira entre as actividades da terra e do mar e pólo concentrador das suas riquezas, mas também das suas crises.
 

Qual o papel da Associação nesse objectivo?


A Associação assume-se como representante organizado da sociedade civil, nomeadamente como assistente qualificado em todos os processos que incluam entidades públicas relativamente ao território em questão.

Pretende intervir activamente contra todas as medidas públicas ou privadas que ponham em causa a integridade da zona arqueológica e paisagística.

Pretende ter uma intervenção institucional na elaboração do futuro quadro de ordenamento e gestão territorial da zona de Balsa e participar na sua administração posterior.

Pretende também intervir e colaborar nas políticas, acções, eventos e rotinas de funcionamento das estruturas a criar.
 

Qual o nosso programa?


1.
Criar um Parque Arqueológico e Ambiental de Balsa Romana integrado numa zona de protecção classificada como monumento nacional e que abranja a totalidade da antiga cidade romana e a sua envolvente organizada.

2.
Acabar com a situação escandalosa (e inédita numa cidade romana!) da estação arqueológica da Luz de Tavira (Balsa) se limitar a uns ridículos "canteirinhos" de circunstância e alargá-la de modo a incluir toda a zona de protecção, tal como foi definida no Relatório de 1989 do Parque Natural da Ria Formosa, com as correcções posteriores que se venham a verificar justificáveis.

3.
Incluir a totalidade da Quinta da Torre d'Aires no referido Parque, com um estatuto a determinar.

4.
Definir uma política territorial especial relativa aos prédios incluídos, decorrente de um plano de ordenamento especial do parque arqueológico de Balsa, negociando opções e contrapartidas justas com os proprietários. Esse plano incluirá um projecto de servidões de acessos ao parque arqueológico, baseado num estudo arqueológico prévio.

5.
Propor formas de integração dos proprietários/condóminos de Balsa e propor medidas de contrapartida e políticas de estabelecimento de confiança tendo em vista a disposição para incluir partes descobertas e a cedência, segundo modos a combinar, dos espólios detidos por particulares.

6.
Definir uma zona de acesso e gestão pública e uma zona privada nesse parque:
  • A primeira, constituída pela Quinta da Torre d'Aires, pelos domínios públicos marítimos e por prédios possuídos por instituições públicas ou adquiridos ou cedidos para o efeito;
     
  • A segunda, constituída por prédios de proprietários privados, discriminando graus de servidão patrimonial, desde os totalmente livres de servidões até aos que tenham parcelas visíveis de ruínas romanas integradas no monumento nacional.

7.
Propor como modelo institucional de propriedade e gestão a forma de Fundação, seguindo o exemplo da Fundação Cidade de Ammaia, embora possam ser consideradas alternativas.
A Fundação Cidade de Balsa na Ria Formosa, com modelo financeiro e institucional a definir, será em princípio constituída por:
  • CCDR-Algarve, representante regional de todos os organismos do Estado Central com tutela sobre a zona e das instituições técnicas da UE;
  • Município de Tavira;
  • Sociedade civil, nomeadamente através da associação Cidade de Balsa;
  • Associação dos proprietários/condóminos de Balsa (a constituir);
  • Entidades financiadoras ou proprietárias estratégicas.

O que deverá ser o Parque Arqueológico de Balsa


O Parque Arqueológico de Balsa deverá incluir um conjunto de valências essenciais para o cumprimento dos objectivos gerais acima expressos.

Em termos gerais há que considerar as seguintes:
  • Núcleo romano do museu de Tavira, a constituir como resultado das negociações e dos protocolos necessários à devolução de espólios balsenses guardados em vários museus do país e de medidas tendentes a atrair a confianças de detentores privados de artefactos de valor museológico.

    O núcleo incluirá igualmente os espólios romanos de outros sítios do concelho e outros na posse do Museu Muncipal. Poderia localizar-se em Luz de Tavira.
     
  • Gabinete arqueológico de Balsa, de apoio às actividades arqueológicas em curso e de depósito de materiais. Poderá estar incluído no item anterior e inclui actividades técnico-científicas correlativas, nomeadamente páleo-fisiográficas e paleoambientais.
     
  • Centro de estudos do Algarve romano e do território de Balsa: grupo de estudos de história local e regional, em colaboração com instituições nacionais e estrangeiras, destinado a produzir e divulgar trabalhos de índole académica.
     
  • Centro Interpretativo de Balsa: estrutura que centralizará a divulgação histórica, patrimonial e cultural destinada ao grande público e ao sector escolar. Terá como missão a elaboração e gestão de programas de divulgação, formação e edição orientados para públicos específicos.

    O seu funcionamento poderá ser organizado em programas plurianuais atribuídos a entidades idóneas seleccionadas por concurso público. Destacam-se as seguintes áreas de intervenção:
     
    • Guias, exposições, palestras e eventos;
    • Formação de professores dos ensinos básico e secundário regionais, a integrar num programa de história do Algarve;
    • Edições e criação de produtos museológicos
       
  • Zona de parque arqueológico visitável, que inclua todos os núcleos de vestígios arqueológicos postos a descoberto, com percursos definidos e de áreas de lazer, incluindo uma zona de serviços, comércio especializado e actividades culturais específicas.
     
  • Zona de actividades agrícolas e de paisagem ordenada, com um planeamento integrado com a promoção de agricultura sustentável e amiga do ambiente, de tradição romana.
     
  • Pólo de promoção de produtos locais e regionais da terra e do mar, de tradição romana e integrado em projectos de actividades económicas agro-alimentares e da Dieta Mediterrânica.
     
  • Pólo de turismo histórico-cultural de temáticas romanas, com organização de eventos e iniciativas enquadradas nos programas da Região de Turismo do Algarve.
     

Qual os objectivos a curto prazo?


1.
Denunciar e fazer o acompanhamento constante da actuação da Direcção Regional da Cultura e outras eventuais entidades relativamente à falsificação pública de informação no sentido de favorecer o projecto das estufas e relativamente à incompetência demonstrada até à data na delimitação e na protecção efectiva da área arqueológica;
 
2. Pôr termo ao projecto das estufas na Quinta da Torre d'Aires e arranjar um acordo aceitável pelas partes, nomeadamente por permuta de terrenos ou outras medidas alternativas;
 
3. Promover um estudo de prospecção geofísica de alta definição em toda a zona delimitada pelo Relatório de 1989, o qual inclui necessariamente a totalidade da Quinta da Torre d'Aires;
 
4. Promover uma moratória provisória sobre os usos do solo em toda a zona delimitada pelo Relatório de 1989, até à elaboração de um plano especial;
 
5. Denunciar e acompanhar os processos de licenciamento, edificação e urbanização na zona referida no ponto anterior;
 
6. Reservar a totalidade da Torre d’Aires, zonas de domínio público e prédios de instituições públicas para o projecto;
 
7. Afectar especialistas e instituições para elaborar um projecto de ordenamento, gestão e financiamento, incluindo a CCDR-Algarve e a Câmara de Tavira.

Saturday, September 05, 2015

O circo (hipódromo) de Balsa. Uma síntese actualizada

Modificado em 06 Set 2015: 13:04

Apresenta-se aqui uma nova síntese do dossiê de localização do circo de Balsa, que publiquei em 2007 no livro "Balsa, cidade perdida" e desenvolvi em conferências posteriores.

Introdução


A questão da localização do circo de Balsa tem sido motivo de especulação e de chicana em certos meios da arqueologia clássica portuguesa.
Lembro-me em 2001 que a presunção de apresentação de uma hipótese sobre a localização do circo era considerada à partida com o despeito devido aos insolentes!
Como sucede tantas vezes, estas posturas arrogantes e nos antípodas da praxis científica escondem impotências profundas: ninguém no mundo da arqueologia clássica portuguesa foi capaz de apresentar uma proposta fundamentada durante um século, período que medeia entre a descoberta das placas que levaram a sua identificação e o texto do Professor Vasco Gil Mantas de 1997, cuja proposta se enuncia mais adiante (e que tem sido quase sistematicamente ignorada pelos autores posteriores)!
 
A triste realidade é que a elaboração (e avaliação) de propostas de interpretação arquitectónica e urbanística a partir de vestígios informes ou incompletos e de contextos topográficos de épocas posteriores carece de uma preparação académica e mesmo escolar básica que os classicistas e a esmagadora maioria dos arqueólogos estão hoje longe de possuir.
Infelizmente essa incapacidade degenerou posteriormente em "ninguneo" bibliográfico e apropriação de ideias apresentadas como originais na obra de Catarina Viegas ("A ocupação romana do Algarve", UNIARQ, Lisboa 2011), revelando uma preocupante degradação de um meio académico insubstituível e até aí de referência.
 

A identificação de um circo em Balsa


Tal como é do conhecimento geral essa identificação cabe exclusivamente à epigrafia, através da descoberta na 2ª metade do século XIX de duas placas com inscrições alusivas:


C(aivs).LICINIVS.BADIVS
PODIVM.CIRCI.P(edes).C(entum)
SVA.IMPENSA.D(ono).D(edit)

L(vcivs).CASSIVS.CELER
PODIVM.CIRCI.PEDES.C(entum)
SVA.IMPENSA.D(ono).D(edit)

As duas lápides quase idênticas, em tamanho e formulário, proclamam a doação de parte do pódio do circo de Balsa por dois cidadãos particulares: Gaio Licínio Badio e Lúcio Cássio Celer.

A dimensão das placas, a onomástica dos doadores e o valor da oferta (cem pés = 30 metros de pódio = cerca de 90 m2 de silhares mais 30 m de balcão) revela que o empreendimento foi financiado por indivíduos de uma classe média relativamente modesta.

Se se considerar um circo de dimensões idênticas aos de Mirobriga e do Arroio (em Balsa), com um
perímetro de pódio aproximado de 840 m, teremos em Balsa uma iniciativa que abrangeu cerca de 28 famílias, originando, teoricamente, 28 placas.

 
A igualdade entre as ofertas permite considerar tratar-se de um munus (obrigação fiscal) colectivo, partilhado igualitariamente por balsenses do mesmo estatuto sócio-económico.
 

No entanto, a edificação integral do circo, para além do pódio e mesmo se assente num aterro maciço, corresponderia a um investimento muito maior, devendo ter abrangido um número bastante mais elevado de cidadãos, ou então cidadãos muito mais ricos ou patronos exteriores.
  

As alternativas da localização do circo


Existem actualmente três alternativas minimamente fundamentadas, assinaladas na planta de reconstituição urbana da cidade romana apresentada figura seguinte.

A - Pontal junto à ribeira da Xareca
B - Ilha-barreira ou banco de sapal junto à margem da quinta das Antas
C - Sítio do Arroio, imediatamente a norte da necrópole do mesmo nome

A - Pontal da Xareca


Vasco Mantas ["As civitates: esboço de geografia política e económica do Algarve romano" in Barata, Filomena & Parreira, Rui (Eds.), IPPAR, Lisboa, 1997, pp. 283-310] identificou uma conspícua marca semicircular no topo do pontal da Xareca, interpretando-a como a cabeceira do circo. 
Essa interpretação é, porém, extremamente improvável pois o pontal é demasiado curto para uma estrutura com a forma e dimensões propostas por esse autor: a análise altimétrica da possível plataforma mostrou haver um desnível de 7.5 m. 

Mesmo considerando um nível de terraplanagem 1 m abaixo da cota máxima actual, deveria ter existido um aterro com cerca de 76.3 mil metros cúbicos acima do terreno hoje existente, enorme volume de terra de que não há vestígios! 


Um eventual aluimento tectónico desta grandeza é incompatível com os níveis de derrubes efectivamente observados (ver a figura seguinte) e com a sobrevivência de importantes vestígios romanos in situ, na escarpa. 

Não se justificaria também tal obra, numa zona onde abundam as plataformas naturais.

O problema da proposta do Professor Mantas está na utilização exclusiva de fotogramas verticais que não permitem analisar a topografia fina do terreno, nomeadamente dos declives e descontinuidades altimétricas.

Para evitar este tipo de erros em análises arqueotopográficas, de Balsa ou de algures, deverão associar-se sempre as sobreposições planimétricas (preferencialmente de épocas e estações do ano diferentes) com um modelo digital do terreno, de precisão planimétrica e altimétrica suficientes.

A planta seguinte procura responder a esta exigência. Ela sintetiza a morfologia costeira correspondente à área urbana de Balsa, obtida pela combinação de análise fotogramétrica de várias fontes e de análise do modelo digital do terreno com uma resolução altimétrica de 50cm, exaustivamente confirmadas e completadas por prospecções no terreno.

Nela assinalam-se as plataformas, taludes de escarpa, zonas de aluimento e deposição correspondentes às hipóteses A e C de localização do circo e de muitas outras zonas edificadas da cidade. 

O estudo do terreno permitiu reconstituir transformações artificiais atribuídas à Época Romana e propor hipóteses fundamentadas sobre a linha de costa antiga e a localização do porto e da barra.

A caracterização das marcas mais antigas foi feita após identificação e eliminação das mais recentes, provocadas por trabalhos agrícolas e pela acção da erosão e de aluimentos das falésias. 

Marcas fósseis mostram plataformas semi-artificiais, taludes, muros de suporte, fossos e condutas de água antigas. 

As plataformas de terraplanagem correspondem às principais áreas de concentração de edifícios públicos ou de grandes espaços urbanos.

As marcas fornecem igualmente elementos rigorosos sobre a regressão do nível do mar (que terá baixado menos de 50 cm, desde o máximo local da transgressão marítima dunkerkiana, ocorrida pelo séc. I da nossa era) e sobre a colmatação de antigos esteiros marinhos (que alcançavam zonas hoje com cotas de 3-4 m).

Estes valores são compatíveis com outros recolhidos em vários pontos do Algarve e da costa da província de Huelva.

A linha de costa foi restituída localmente a partir de uma extensa linha de taludes com sinais de acção marinha. Ela foi calibrada por vestígios remanescentes de cetárias, situadas abaixo do nível do cais, e pelo nível do mosaico na base da escarpa da Xareca. Este pertenceria provavelmente a um cais porticado, junto à escadaria que o ligava à plataforma superior.



A função da estrutura inicialmente identificada por Vasco Mantas permanece conjectural. 



No entanto, a sua localização periférica mas visível de toda a cidade, sobre uma elevação que domina a fachada marítima, e, sobretudo, as dimensões e a forma da plataforma “em ferradura” (primitivamente suportada por muros na escarpa, de que restavam ainda importantes vestígios em 2001) ajustam-se muito bem a um templo com um recinto períbolar, como o de Dea Caelestis em Dougga. 



B - Ria (banco de sapal, Antas)


A documentação de Sebastião Estácio da Veiga constitui, para o melhor e para o pior, uma fonte única e insubstituível relativamente a Balsa e a outros sítios de primeira grandeza do Algarve romano. Seria assim lógico e coerente que tivesse sido objecto ao longo dos anos de um escrutínio minucioso e de um esforço interpretativo considerável. 

Infelizmente, por incrível que possa parecer, ninguém se deu ao trabalho de ler a nota de Estácio da Veiga relativamente às placas do circo numa das suas folhas manuscritas referentes a Balsa (infelizmente mal publicada – cortada - na edição de Maria Luísa Affonso dos Santos "Arqueologia Romana do Algarve", vol. 1, desdobrável hors-texte após p. 298) e de a associar á nota de Emil Hübner na sua descrição epigráfica das mesmas!



Esta cegueira preguiçosa só pode ser interpretada como incompetência bibliográfica primária, inaceitável mesmo num estudante básico de historiografia. 

Esta atitude corresponde infelizmente bem ao sentimento contraditório dos arqueólogos clássicos relativamente a Estácio da Veiga: por um lado objecto de hagiografia institucional enjoativa, por outro lado vítima de um total desprezo ou incapacidade de leitura da sua problemática documentação de registo arqueológico. 
Esperemos que os arqueólogos do futuro não herdem esta postura dos contemporâneos relativamente a estes.
 
Na realidade o lugar de achamento das lápides relativas ao circo pode determinar-se com relativa precisão: Estácio da Veiga, na sua planta n.º 30 referente às quintas das Antas e Arroio (1877) anota: 
 
“A SO destas ruínas [a sala com pavimento de mosaico sobre hipocausto] uns [sic] 200 m foram encontrados dois monumentos epigráficos denunciando ter havido um circo em Balsa”.
 

A localização das citadas ruínas ficou claramente estabelecida em 1989 com a escavação então realizada, que as redescobriu (Cristina Tété Garcia) "Estação arqueológica da Luz (Tavira)", Parque Natural da Ria Formosa, Olhão, 1989). 
O sítio das lápides, determinado a partir delas, cai dentro da ria actual, o que concorda com a notícia de Emil Hübner (“Monumentos de Balsa (perto de Tavira)” in Revista Archeologica e Histórica 1887) que indica terem sido descobertas “no meio de umas vastas ruínas descobertas pelas águas do rio...”.
 
Esta segunda notícia é fundamental por revelar que as lápides se encontravam em estruturas arruinadas, não se tratando de objectos isolados, eventualmente transportados de outros locais.
A sua localização, em plena ria actual, é compatível com a ilha-barreira existente na Época Romana, mais próxima da margem, como se refere no livro Balsa, cidade perdida, tema que vou omitir aqui.
 
As estruturas e as lápides pertenceriam, muito provavelmente, a uma fachada do circo, separado da cidade por um estreito canal.

Não restam assim dúvidas razoáveis de que o edifício correspondente às lápides se situaria num banco de sapal acondicionado para o efeito, o que poderia eventualmente permitir a inundação da sua pista pelas marés , para a realização de espectáculos de lutas entre barcos ("naumaquias"), cuja existência em Balsa é atestada na inscrição do pedestal de Annius Primitivus, reproduzido na figura seguinte.
FORTVNAE AVG(ustae)
SACR(um)
ANNIVS PRIMITIVVS
OB HONOREM
IIIIII VIR(atus) SVI
EDITO BARCARVM
CERTAMINE ET
PVGILVM SPORTVLIS
ETIAM CIVIBVS
DATIS
D(e) S(ua) P(ecunia) D(ono) D(edit)

 
Deve frisar-se no entanto que nada garante que haja qualquer relação entre o circo e as "naumaquias". Qualquer zona em frente da cidade seria adequada para este efeito, ao largo do amplo porto exterior, ou na bacia do porto interior, ou no canal em frente da parte urbana das Antas.

No entanto, a existência do circo entre o canal e a ilha-barreira sugere uma pista assente numa terraplanagem realizada num banco de sapal aterrado, drenado e estaqueado para o efeito, como posteriormente foram os fundos das marinhas de sal ou, mais recentemente, o estádio de futebol de Santa Luzia. 
As estruturas construidas: carceres, tribunas e bancadas assentariam assim sobre os taludes-diques que isolavam a pista, numa cota superior a qualquer preia-mar. 
 
O nível da pista poderia ficar assim abaixo da preia-mar, permitindo a sua inundação controlada, de modo muito semelhante aos moinhos-de-maré, com as suas caldeiras, comportas e sistemas de taludes-diques, sobre os quais assentam as partes edificadas, por vezes bastante complexas, que incluem armazéns e áreas residenciais além das zonas de moagem propriamente dita.

O pódio referido nas lápides seria assim do revestimento e plataforma do lado da dique-talude voltado para a pista, sobre o qual assentariam as bancadas, no todo ou em parte de madeira ou estruturas aligeiradas.
Tal como os moinhos de maré expostos ao mar, os taludes voltados a sudoeste e para o canal também deveriam ser protegidos por silharias e contrafortes que servissem de quebra-mar nas situações extraordinárias mas inevitáveis de tempestade.

A identificação de enormes volumes de blocos de pedra e alvenarias nas dragagens efectuadas em frente à "acrópole" da Torre d'Aires – que colmatavam transversalmente  todo o fundo do canal – apontam neste sentido. O ponto C da figura seguinte assinala estes achados. O ponto B o sítio de achamento das placas do circo. A tracejado a margem exterior mais provável do canal.
A manutenção das linhas de cais e do molhe do porto interior do lado de terra sugere que esses materiais escorreram ou do lado da ilha, isto é, do circo, ou de uma grande estrutura semi-submersa que fechava ou diminuía de algum modo o canal na extremidade nascente do porto.
 
A planta urbana representa a localização aproximada deste circo, conjecturalmente com dimensões e orientação idênticas às do circo do Arroio, segundo o eixo principal, que terá sido inevitavelmente paralelo ao canal costeiro e à ilha-barreira.
  

C - Subúrbio oriental (Arroio)


Marcas fotogramétricas de 1985 e 2000 mostram claros vestígios de uma grande estrutura cuja forma e dimensões se ajusta perfeitamente a um hipódromo, sendo virtualmente idênticas às do circo de Miróbriga.
Os vestígios de caliços de alvenaria, postos à vista e espalhados pelas lavras, correspondem apenas às zonas dos carceres (edifícios e barreiras de partida) e da cabeceira semicircular, indiciando tratar-se de uma estrutura relativamente modesta, provavelmente com bancadas de madeira construídas sobre taludes de terra.
 
Surgiram numerosas moedas de baixo valor, adiante referidas, em zonas onde se situariam as bancadas, sugerindo fortemente uma relação funcional entre as perdas casuais e a presença de fortes concentrações de espectadores.
 
A análise altimétrica da zona reforça a evidência anterior, revelando uma plataforma nivelada correspondente à pista, que sofreu posteriormente uma erosão hidráulica parcial, cujos sedimentos se depositaram sobre a área da antiga necrópole junto à margem (ver acima a planta da morfologia do terreno). 

O talvegue dessa erosão corresponde topograficamente ao eixo de um escoadouro canalizado que atravessava a necrópole e foi documentado por Estácio da Veiga. Serviria muito provavelmente para drenar a pista.

Realizou-se em 2008 uma maqueta deste circo, baseada em paralelos provinciais, que se mostra na imagem seguinte.

 

Conclusão


A identificação de dois circos leva-nos a concluir terem existido dois edifícios com esta função, naturalmente em fases distintas da vida da cidade. 
O circo da Ria será mais antigo, devido à sua maior proximidade do centro urbano. O seu abandono ter-se-á possivelmente devido à grande instabilidade do terreno e à acção do mar.

Há porém uma contradição por resolver entre a datação das placas do circo inicial da ria, (atribuída por José d'Encarnação a finais do séc. II ou inícios do III) e a presença de abundantes moedas locais e regionais de chumbo, de Balsa, Ossonoba e Baesuris em zonas das bancadas do novo circo do Arroio, onde também coexistem com numerosas moedas do Baixo-Império (séc. III e IV), que garantem a sobrevivência funcional do circo até finais do séc. IV.

Pensa-se que as amoedações locais não terão provavelmente ultrapassado o reinado de Cómodo (180-192), ou certamente o de Caracala (211-217) , sendo rapidamente desmonetizadas por lei ou pela usura. 
 
A sua presença na zona do circo do Arroio revela que este será anterior a esse limite. Por outro lado parece difícil de aceitar a existência de políticas edilícias importantes durante o período de grande crise que terá ocorrido entre a "Peste Antonina" (c. 175) e a vitória de Séptimo Severo contra Clódio Albino (c. 195).
 
A aceitar a datação baixa proposta por José d'Encarnação para o circo inicial tal significa que a sua existência terá sido extremamente curta, durante a renascença económica de Séptimo Severo, tendo sido prontamente substituído pelo novo circo do Arroio.

De facto nada obriga que a obra de construção ou revestimento do pódio seja contemporânea da construção inicial do circo. Pode perfeitamente tratar-se de uma reconstrução após um episódio destrutivo ou fase de decadência estrutural. Ou então - sem excluir a hipótese anterior - resultante de um enobrecimento arquitectónico cívico de uma estrutura utilitária previamente existente.

Neste sentido o circo "marítimo" poderá já ter existido desde, pelo menos, a municipalização Flávia (que se começa a fazer sentir urbanisticamente a partir de 81) ou no período seguinte de consolidação urbana. 

A localização topográfica do circo - de periferia - relativamente ao núcleo urbano inicial pré-Flávio e de articulação com a expansão hipodâmica atribuida ao período Flávio-Antonino (c. 80-175) sugere um programa urbanístico comum que incluía a cidade e o circo  nestas fases mais precoces.

Se assim for, o registo epigráfico sobrevivente poderá reflectir a resposta política cívica  local às comemorações da vitória de Séptimo Severo, resposta essa fundamentada no boom económico iniciado nesse período e que está amplamente indiciado no registo arqueológico algarvio da primeira metade do séc. III, nomeadamente de actividades portuárias, manufactureiras e de import-export, ligadas à Bética, ao Norte de África e a Itália. O complexo de Marim romano (Olhão) é um exemplo paradigmático desta realidade.

A decisão de mudar a localização do circo e construir uma nova estrutura na nova periferia suburbana da cidade, junto à nova necrópole coeva, poderá ter sido tomada muito pouco tempo depois, após um possível episódio destrutivo (portanto entre 195 e 213, altura da reforma monetária de Caracala). A nova construção enquadrar-se-ia assim ainda na nova conjuntura favorável e na necessidade política de legitimização da nova dinastia, que poderá ter contribuído directa ou indirectamente na sua feitura.